CAROLINA POMBO
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Sobre arte, sexualidade e infância : testemunho de uma vítima de pedofilia
Por Carolina Pombo

Tenho uma confissão a fazer : tenho medo, e tenho tido muito mais medo ultimamente. Mas vou me aliar ao que me faz sobreviver, a minha arte com palavras.

Sou aquela vítima de abuso sexual na infância que conseguiu reagir, que conseguiu se proteger sozinha durante um tempo, mas se viu surpreendida em diferentes situações de abusos sutis e alguns nem tanto, e que anos depois, na maioridade, conseguiu falar, denunciar e escrever sobre o assunto. Recentemente terminei de escrever um livro no qual conto essa dentre outras histórias, e às vezes ainda hesito em enviá-lo para editoras porque temo o ambiente no qual ele será recebido. Hoje, aos 34 anos, além de escritora, me considero uma psicóloga bem sucedida, com uma prática sensível e acertada no cuidado de pessoas que já tiveram diferentes experiências com abusos. Faço muitas outras coisas na minha prática profissional também, pois não me deixei consumir e reduzir a essa marca da minha história. Sou bem forte, de verdade. (E para contrapor os estigmas e preconceitos que se abatem sobre as vítimas de abuso, sou bem realizada sexualmente – obrigada pela preocupação dequeles que ainda tentam falar sobre mim no meu lugar). Apesar de nunca ter visto meu abusador ser devidamente punido, nessa sociedade hipócrita, nunca me intimidei e continuo a tentar conscientizar as pessoas sobre o que de fato contribui para esse tipo de violência.

Mas tenho tido um medo que nunca senti antes. Alguma coisa tem me feito temer as reviravoltas que uma denúncia de abuso sexual podem ter : culpabilização da vítima, apelo à censura de tudo que envolva nudez e sexualidade, tabus que se renovam sobre a participação de homens nos cuidados das crianças, discriminação contra homossexuais e pessoas transgênero, defesas acaloradas de uma sociedade « de moral e bons costumes » que exclui o valor da liberdade e da responsabilidade individual. Isso me faz temer o quanto a sociedade brasileira tem dado mais poder ainda aos abusadores e pedófilos, que usualmente tem pele de cordeiro mas exibem ao mesmo tempo personalidades impositivas, autoritárias, implacáveis – porque vivem sob a urgência de um desejo que não combina com a empatia e a responsabilidade pelo bem estar e a integridade de outros. Geralmente, são homens que preferem limitar a liberdade de todos, afim de reforçar os tabus e terem mais margem de ação para violentar sem serem devidamente identificados. Escondem-se por entre as turbas inflamadas, apontam os dedos para mulheres, principalmente para as mães, sempre, eternamente, culpadas! Tenho medo do quanto essa estratégia velha e gasta de impor o silêncio funciona nesse contexto. Se não podemos ver nudez de forma natural, se não podemos apreciar quadros, filmes, performances com nudez – não aquela objetificada, feita para naturalizar o corpo feminino e infantil como objetos sexuais, mas aquela que nos chama a perceber o mundo de forma inusitada, um pouco mais livre dos formalismos – então, se não podemos conviver com arte que explora essa inusitada e interessante percepção, não podemos falar sobre nudez e sexualidade como temas existenciais. E então somos obrigados a lidar com tais temas como objetos, apenas objetos de nojo, gozo irresponsável e pecado, ou como contemplação alienada.

Mas, eu os convido a pensar no corpo e na sexualidade como veículos de Ser-no-mundo, como parte desse todo perceptível que compõe o Eu em sua integridade e pontecialidade para ser livre e autêntico com responsabilidade.
Nesse momento, penso na tentativa da artista Lygia Clark, nos anos 1960 e 1970, de libertar essa potencialidade corporal e subjetiva entre os enrijecimentos que seu ambiente cultural produzia. A professora e psicóloga Suely Rolnik explora essa arte germinativa de Lygia e nos fala com a maior lucidez : « A arte é assim uma reserva ecológica das espécies invisíveis que povoam nosso corpo-bicho em sua generosa vida germinativa; manancial de coragem de enfrentamento do trágico. De acordo com os contextos históricos, varia o grau de permeabilidade entre esta reserva de heterogênese e o resto do planeta, o quanto o planeta respira seus ares. No mundo contemporâneo, nos deparamos com uma situação paradoxal. Por um lado, a arte é um domínio bem delimitado, o que produz a impressão no resto do planeta de um certo esmaecimento do corpo-vibrátil. Instaura-se um tipo de subjetividade que tende a desconhecer os estados intensivos e a orientar-se unicamente pela dimensão formal » (p. 2). Ou seja, a experiência estética com a arte não fica só no plano formal, ela tem o potencial de fazer nossos corpos serem afetados, despertando neles a lembrança residual de que são inteiros, cheios de vida, ainda que carregando o destino da morte.

Nesse contexto (e no contexto da performance artística « La bête » de Wagner Schwartz no MAM São Paulo, declaradamente inspirada no trabalho de Lygia Clark), revelam-se as possibilidades de expressão desse « corpo-bicho » no espaço formal de um museu. E é nesse contexto que a nudez deve ser lida. Uma criança interagindo com a performance é inevitavelmente incapaz de acessar o elevado significado da obra ? Estaria ela fadada a confundir nudez artística com pedofilia ? Afinal, isso pode ser considerado arte ? Essas são perguntas da perspectiva formalista, de corpos enrijecidos em modos de existência que amortecem os corpos vivos, tratando-os como objetos externos alienados. Mas, em nosso ambiente cultural, precisam ser respondidas. E só podem ser respondidas com a seguinte consideração banal : crianças, pela fase primordial em que se encontram, tem provavelmente mais capacidade de entender o contexto dessa obra do que o olhar formalista de certos adultos. Elas conseguem captar com sua vibrante curiosidade essa experiência de liberdade e autenticidade do corpo-bicho sem passar por quaisquer desses tabus dos nossos olhos enrijecidos pela pornografia. Todas as crianças devem então ser submetidas a esse tipo de experiência estética ? Não. Mas, aquelas de quem os responsáveis confiam na possibilidade de aproveitar essa experiência, por que deveriam ser privadas de fazê-lo ?

Vou avisar algo para os abutres de plantão e àqueles que tanto querem falar em nome das vítimas de pedofilia : foram as inúmeras oportunidades que tive quando criança e adolescente de viver a arte, de ir à exposições, teatros, museus, ler poesias, livros, fazer teatro e ouvir músicas de todos os tipos, que às vezes incluíam nudez, que me salvaram da experiência mais mortífera que vivi. Fui capaz de identificar claramente a linha tênue entre viver minha sexualidade e ser sexualizada por um adulto, porque tive em mim o despertar de uma potência que abusador nenhum foi capaz de me roubar. Eu sabia e sei qual é a diferença entre uma performance artística com nudez e um investimento sexual de outro sobre o meu corpo. Tive medo de denunciar os abusos que sofri quando eu era menor de idade não porque estivesse obtendo qualquer prazer nessa situação ou porque a tivesse misturado às minhas experiências com nudez artística, mas porque denunciar significava falar de um assunto que era tabu para a maioria das pessoas que eu conhecia – eu simplesmente não via ouvidos e corpos generosos com os quais pudesse encontrar acolhimento e proteção. Isso veio acontecer depois.

Ao mesmo tempo, deixo aqui minha sugestão : assistam à performance EJAD MI IODEA da cia de dança israelense Batsheva e do coreógrafo Orad Naharin que começa com o alerta : « A ilusão do poder é a linha tênue que separa a loucura da santidade » (lembrando que antes de ser tão aclamada pelo mundo afora, a coreografia foi censurada pelo governo israelense na década de 1990, por causa do temor de seu presidente conservador de que ela o fizesse perder votos com os eleitores religiosos).

E você, quer estar onde é possível quebrar os silêncios que protegem os pedófilos e verdadeiros abusadores ou com eles enrijecer nossas possibilidades de sobreviver ? Vai aqui o meu apelo para que você se deixe encantar pela arte, converse com ela, e supere seus medos de quebrar o silêncio. Não se agarre ao medo do inusitado, permita-se descobrir como corpo-vibrátil, em primeira pessoa, com autonomia, e saiba identificar os lobos em pele de cordeiro.

Referência do texto de Suely Rolnik: "Lygia Clark e o híbrido arte/clínica" acessível em: http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/Artecli.pdf